CAUSOS | NOSSA SENHORA SUBIU OU NÃO AOS CÉUS?
CAUSOS | NOSSA SENHORA SUBIU OU NÃO AOS CÉUS?
26 de março de 2021 Por pauloA congregação religiosa dos padres salesianos de Dom Bosco denomina de aspirantado suas casas de formação. Na cidade pernambucana de Carpina se situa um destes aspirantados. Bela e imponente construção que fica a poucos metros da rodovia que liga Recife às zonas da mata e do agreste. Faziam parte do dia a dia destas casas, orações, estudos, trabalho braçal, ensino de música, de artes cênicas, atividades esportivas. Tudo dosado com muita disciplina. Muita fraternidade. O saber e o fazer eram duas faces da mesma argamassa que envolvia a formação daqueles jovens aspirantes à vida religiosa sacerdotal. Se o estudo das matérias escolares era muito levado à sério, a formação religiosa também era intensa. Adredemente forjada através de pregações, do estudo da religião católica, da história sagrada, do catecismo, dos dogmas, da vida dos santos. Tudo regado com muita reza..Uma das práticas para reforçar esta seriedade consistia na obrigatoriedade dos alunos da quarta série ginasial discorrerem sobre um tema da mariologia a cada noite do mês de maio.Momento muito esperado por todo o aspirantado. Os oradores se preparavam meses antes. Os temas eram definidos ou melhor sorteados em janeiro. O temário em sua maioria, tratava de assuntos relacionados com a ladainha de Nossa Senhora. Por exemplo, por que Rainha dos Apóstolos, Auxiliadora dos Cristãos, Mãe de Misericórdia. Enfim qual a história de cada invocação ou dogma relacionado à mariologia?
O cenário era o mais circunspeto possível. Após o recreio da noite, todos os aspirantes se perfilavam em frente a uma bela estátua de Nossa Senhora Auxiliadora, esculpida em mármore de carrara, que ficava no meio do pátio central a uns dez metros de altura. Uma das noites mais esperadas, foi aquela em que o orador era um jovem aspirante baiano. Corinto. Boa pinta, mais fama de bom falante do que de bom orador. Inteligência bem acima da média da turma, que por sinal possuía algumas estrelas que se destacavam em todo o aspirantado. Figura que apesar de não gozar da fama de engraçado, era um pouco chegado a cômico. Não era entretanto o tipo palhaço como existia em outras turmas, desses que bastava dizer qualquer coisa para todos caírem na risada. Não, o orador da noite não gozava desta fama. Entre seus pares podia-se dizer que era mais piadoso do que piedoso. O tema a ser dissertado apesar do assunto, não comportava leveza nenhuma.
Assunção de Nossa Senhora. Assunto bonito que certamente permitiria arroubos de oratória, análise teológica, incursões pela história de outros dogmas marianos como o da virgindade antes, durante e depois do parto. Tema complexo que exigiria do orador muita didática na explanação. Era um sábado de maio muito concorrido pelos fieis que vinham participar do mês mariano e da benção do santíssimo que acontecia todas as noites. Findo o recreio, todos ao local onde aconteceria a louvação ante a linda estátua. Loa entoada: “Auxiliadora virgem formosa, dos pequeninos mãe dadivosa.”. O orador da noite subiu os degraus que embasava o monumento. Olhou por alguns segundos a platéia que se achava num silêncio misterioso sob a luz de um grande holofote que iluminava toda a área. Deu uns passos para um lado e para outro esfregando as mãos, propositadamente imitando o grande orador sacro Belchior Maia D ́Athayde, que por sinal se encontrava presente. Gesto manjado por todos daquele ambiente. Começou sua peça oratória explicando que ia falar de um dogma.. Dissecou inicialmente a palavra dogma, indo às raízes gregas do termo.
Explicou a diferença entre assunção e ascensão. E ainda comentou que não se confundisse acender com c e ascender com sc. Fez uma digressão com a palavra incenso cuja fumaça ascende aos céus depois que é aceso. Poucos entenderam a quase piada que fez um padre velho balançar a cabeça em forma de desaprovação. Explicou que a ascensão de Jesus foi por merecimento próprio. E que Nossa Senhora se foi assunta, o foi por merecimento de seu filho Jesus. Argumentou que se ela foi assunta, é porque deveria ter ressuscitado.Questionou por que não há registro sobre a ressurreição de Maria. Fez uma digressão para contextualizar a época em que o papa Pio IX proclamou o dogma da Assunção. Delongou-se um pouco nos fatos históricos da Igreja na época. Sentiu que estava um pouco enrolado. De repente, fez uma pausa. Dobrou as folhas que estava lendo, respirou fundo, olhou para a bela estátua da Virgem Auxiliadora cujo rosto de mármore parecia esboçar um leve sorriso para aquele empolado orador.. Voltou-se para o público que instintivamente parecia se equilibrar numa grande vontade de rir. E num final inesperado, com gestos largos, com voz de tribuno exclamou:
– Mas afinal Nossa Senhora ressuscitou ou não ressuscitou? Subiu ou não subiu aos céus?
– Mais empolgado que nunca, o orador voltou-se para o público e em voz baixinha ele mesmo respondeu:
– Aí é que está o nó.
O respeitoso silêncio que pairava sobre todo aquele páteo desmoronou numa gargalhada. O responsável pela disciplina foi forçado a dar excepcionalmente mais 15 minutos de recreio antes de prosseguir as demais funções daquela memorável noite de maio.
José Paulino da Silva – Do livro: Aspirantado Salesiano: 50 anos